Desde 2004, o Projeto Aprender do Colégio Pueri Domus treina alunos do ensino médio para darem aulas de alfabetização ao ensino médio para jovens e adultos — Foto: Divulgação/Colégio Pueri Domus
Redução
afeta quem não concluiu escolarização na idade esperada. Por outro lado, no
mesmo período, o número de escolas de educação básica regular aumentou 12%.
Por:
Visão do Araripe
Na última década, o Brasil viu o
número de escolas de educação básica aumentar 12%, de 255.445 para 286.014. No
mesmo período, porém, o número dessas escolas que oferecem o ensino de jovens e
adultos (EJA) do ensino fundamental recuou 34%, segundo um levantamento feito
pelo G1 na série "Adultos sem diploma".
Em 2009, 37.334 escolas tinham
turmas do EJA fundamental. Já no ano passado, essa oferta só existia em 24.658
escolas, segundo os dados do Censo que o Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou no mês passado.
Especialistas ouvidos pelo G1 explicam
que a queda na oferta não está apenas relacionada ao aumento da escolarização
dos adultos, que provocaria menor demanda. Apesar dos avanços, eles estimam que
o número de brasileiros sem diploma varia entre 30 e 40 milhões. O país tem
hoje 3,5 milhões de alunos matriculados no EJA, sendo que 59% deles estão no
nível fundamental.
Houve queda em todos os estados,
e apenas o Distrito Federal registrou aumento no número de escolas com a
oferta. No Ceará e em Rondônia, a redução chegou a mais da metade do total de
escolas em 2009:
Em dez anos, o Brasil perdeu um terço da oferta de EJA, segundo os microdados do Censo da Educação Básica — Foto: Rodrigo Sanches/G1
Como consequência do fechamento das
turmas, atualmente as pessoas com mais de 15 anos que não terminaram o ensino
fundamental só podem encontrar cursos em 8,6% das escolas no país. Ou contar
com projetos como o Aprender, do Colégio Pueri Domus, um curso em que os alunos
do ensino regular dão aulas voluntariamente no período noturno, e onde a babá
Maria das Neves, de 55 anos, encontrou o apoio de que necessitava para
finalmente concluir o ensino médio e se matricular na faculdade de pedagogia.
A diferença entre o
curso que ela fez e as turmas de EJA mantidas pela rede pública de ensino é
que, no segundo caso, não só a turma é presencial e mantida com financiamento
do poder público, mas a avaliação feita pela escola também serve para a emissão
do diploma de conclusão do curso, assim como no ensino regular.
No caso de Neves, porém, foi
necessário realizar um exame de certificação. Ela acabou tendo que passar por
quatro tentativas frustradas com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), até
que, em 2017, o Inep decidiu retomar a aplicação do Exame Nacional para
Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) como prova de certificação do ensino médio.
Assim como Maria das Neves, a maioria
dos adultos que fizeram o Enem em busca do certificado não conseguiram a
pontuação mínima exigida, de 450 pontos nas provas objetivas e 500 pontos na
prova de redação. Mas, entre os demais candidatos do Enem, essa situação não
era diferente.
Número de escolas com EJA do ensino fundamental caiu 34% em uma década — Foto: Rodrigo Sanches/G1
Alunos de
dia, professores à noite
Inicialmente criado por
estudantes para alfabetizar funcionários da limpeza, segurança e do restaurante
da escola, o Aprender hoje tem turmas de ensino fundamental e médio e foi
ampliado para atender à comunidade do entorno do Itaim Bibi, além de ganhar
edições em dois outros endereços. Desde o início, porém, as aulas são
ministradas por alunos ou ex-alunos do próprio colégio, no turno noturno e de
forma voluntária.
O professor Giuliano Rossini, coordenador
de projetos sociais do Pueri Domus, explica que, além de educar os adultos, o
Aprender também melhora a disciplina e o rendimento dos estudantes que
participam como professores. "À noite ele é professor, então muda a
relação dele com os professores, ele entende como é estar lá na frente."
As turmas variam entre 3 e 13 alunos e, somando os três endereços, o projeto
mobiliza 80 professores voluntários.
No Projeto Aprender, os estudantes do ensino médio regular viram professores voluntários de jovens e adultos no período noturno — Foto: Divulgação/Colégio Pueri Domus
No
Fundeb, aluno do EJA 'vale menos'
Timothy Ireland, professor da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenador da Cátedra da Unesco em
Educação de Jovens e Adultos, alerta para o fato de que, no Brasil, a oferta de
turmas do EJA tem caído nos últimos dados, o que pode dificultar ainda mais o
processo de escolarização das atuais gerações de adultos que não concluíram o
ensino básico.
Além do acesso mais difícil, o
financiamento público das turmas de EJA, que historicamente é o menor entre
todas as modalidades da educação básica, também teve o menor crescimento em 11
anos.
Dados do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) mostram que, em 2009, o valor por
aluno anual estimado para o EJA desvinculado ao ensino profissionalizante foi
de R$ 2.167,03, considerando o valor corrigido pela inflação (IPCA).
Para 2019, esse número subiu até
R$ 2.870,94. Apesar do avanço de 32,5%, essa é, atualmente, a única modalidade
de ensino em que cada estudante recebe menos de R$ 3,5 mil do poder público.
Já o EJA integrado ao ensino
profissionalizante viu seu valor expandir 56,6%, de R$ 2.749,81 em 2009 para R$
4.306,41 neste ano.
Prioridades
políticas
Os dados do Fundeb mostram ainda
como as prioridades dos gestores impactaram cada modalidade. Em 2009, o EJA
estava empatado com a creche em tempo parcial na posição de "modalidade
com menor financiamento público".
Porém, nos últimos 11 anos, o
financiamento por aluno matriculado na creche parcial de escolas públicas
aumentou 93,1% e hoje é de R$ 4.183,75, 46% maior que o EJA sem vínculo com
ensino profissionalizante.
“Não chega a ter 1% de investimento da
educação destinado ao EJA. O gestor público acaba preferindo investir na
educação de crianças porque tem mais pressão social, jurídica e legal para
fazer isso”, afirma Roberto Catelli Junior, coordenador adjunto da ONG Ação
Educativa.
José Marcelino de
Rezende Pinto, doutor em educação e professor da Universidade de São Paulo
(USP), é especialista em financiamento da educação e explica que é difícil
descobrir quanto exatamente cada rede pública gasta com o ensino de adultos,
porque os professores do EJA são os mesmos do ensino regular.
"Não
existe um professor que faz concurso para EJA. Em geral é um professor que dá
aula nos anos finais e iniciais do fundamental e também dá aula de EJA. O
grande gasto de educação é salário, e o salário desse professor vai sair
misturado."
Mas ele ressalta que, já no ponto de
partida da divisão dos recursos do Fundeb para os estados e municípios, os
estudantes de EJA saem perdendo. Isso porque o cálculo é feito segundo o
chamado "fator de ponderação", que usa como base o valor por aluno
dos anos iniciais do fundamental. Como o EJA tem fator 0,8, cada estudante do
EJA recebe o valor correspondente a 80% do que recebe um aluno do fundamental.
"Os fatores da lei já
desestimulam. Se dez alunos de EJA contam como oito, eu como prefeito já não
vou me sentir estimulado", diz Marcelino, que ressalta outros fatores de
desestímulo à oferta de EJA. "Há uma resistência da própria rede. Como a
EJA é à noite, o diretor tem que abrir escola de noite", ressalta.
Oferta e
demanda
Segundo
Catelli, o Censo de 2010 apontava que 9,6% da população com 15 anos ou mais no
país era analfabeta, e 34,7% dos adultos tinham o ensino fundamental
incompleto.
Ireland diz que a tendência se
deve a corte de gastos e agrupamento de turmas de EJA em menos escolas, e que
as políticas públicas de educação não investem na mobilização ativa para
encontrar os adultos sem diploma. “A oferta normalmente não ultrapassa 10% da
demanda potencial”, explica ele.
A tendência para o futuro, segundo
os especialistas, é que de fato as turmas de alfabetização e ensino fundamental
passem a dar mais espaço para o ensino médio. Mas isso não necessariamente
significa que a escolarização esteja avançando – eles alertam que o ritmo lento
dessa melhora indica que a população mais velha (e, portanto, a menos
escolarizada) vai morrendo.
"A ideia de que vai resolver
pela mortalidade é um erro imenso", afirma Timothy Ireland. "Temos
metas de reduzir em 50% o número de analfabetos funcionais, o que também é muito
improvável."
Em 2018, adultos interessados em
voltar à escola e cursar o ensino médio só encontram esse serviço em 3,4% das
escolas de ensino básico do Brasil.
Mas a demanda por essa modalidade
é evidenciada pela evolução do total de matrículas registradas no Censo
Escolar.
Entre 2014 e 2018, o número de
estudantes no EJA do ensino médio cresceu 5,1%, de 1.367.885 para 1.437.833. Já
o número de estudantes no ensino médio regular caiu 7,1% no mesmo período, o
que pode indicar, além do abandono escolar, a transferência de adolescentes
para o EJA assim que eles completam a idade mínima exigida (15 anos para o
fundamental e 18 para o médio).
“Falta no país hoje uma visão de
que essa é uma dívida social que o país tem que resolver. Hoje se coloca a
discussão numa lógica muito meritocrática, de que a pessoa que não estudou tem
culpa e precisa resolver. Se não criar alguma condição para esse sujeito
estudar, ele não vai estudar”, afirma Catelli Junior.
A próxima
geração de adultos sem diploma
A preocupação com o ensino dos
adultos vai além da geração atual, até a demanda futura de quem hoje deveria já
estar sendo escolarizado de forma adequada. Dados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (Pnad C) de 2017 estimam que cerca de 900 mil
adolescentes de 15 a 17 anos sequer estão matriculados na escola. Entre os
demais, o Censo divulgado em janeiro mostrou que 28,2% estão cursando uma série
inferior à esperada para sua idade, uma situação que aumenta o risco da evasão.
"O aluno de EJA é cada vez
mais jovem, não é o que não teve acesso à educação no ano passado. Ele é fruto
da escola ruim. É a escola de baixa qualidade que vai produzir o aluno do EJA
de amanhã", ressalta Marcelino, da USP.
Dados do Censo da Educação Básica mostram que, nos últimos cinco anos, o número de matrículas do ensino médio regular tem caído, enquanto as do ensino médio para jovens e adultos subiu — Foto: Rodrigo Sanches/G1
Por outro lado, os especialistas
citam diversos benefícios em investir na oferta de mais turmas de EJA,
especialmente em uma sociedade em que, segundo Timothy Ireland, exige domínio
da leitura e da escrita mesmo para conseguir um trabalho de pedreiro.
“Quem tem o maior nível de escolaridade rende mais,
produz mais. Faz sentido em termos de cidadania, e faz sentido em termos de
economia, de produção”, explica Ireland.
Já segundo Marcelino, aumentar a
escolarização dos milhões de adultos brasileiros que não pegaram o diploma tem
impacto direto na melhora do rendimento escolar dos filhos deles. "Se fala
muito que os pais não participam, mas o melhor argumento pro pai participar é
poder estudar na escola em que o filho estuda."
Fonte: Ana Carolina Moreno, G1
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