Um homem de 28 anos, saudável, acostumado a fazer longos
percursos em trilhas com uma mochila nas costas, é internado por apresentar
sintomas de Acidente Vascular Cerebral (AVC). A ocorrência, incomum para uma
pessoa dessa idade, levou os médicos do Hospital Universitário (HU) da USP a
realizar uma exaustiva investigação para determinar sua causa. O estudo
concluiu que a artéria carótida, que leva o sangue ao cérebro, sofreu um
traumatismo repetitivo gerado pelo osso hioide, existente no pescoço. O trauma
prejudicou o fluxo sanguíneo para o cérebro e levou ao AVC.
O caso é descrito na revista eletrônica Autopsy and Case
Reports (A&CR), publicada pelo HU. “Um ano antes, o mesmo paciente havia
apresentado quadro clínico semelhante nas mesmas condições, ou seja, carregando
mochila em uma trilha”, conta o médico Fernando Peixoto Ferraz de Campos, da
Divisão de Clínica Médica do HU, um dos autores do artigo.
Fernando Campos, médico do HU que coordenou investigação
sobre causa do AVC – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
“Naquela oportunidade a paralisia foi revertida, o exame de
ressonância nuclear magnética do cérebro não identificou nada de anormal e o
paciente retomou sua rotina”, afirma Campos. “No entanto, ele voltaria a ser
internado, apresentando um quadro semelhante, porém desta vez constatou-se o
AVC, tanto pelo exame clínico como por exames de imagem.” Segundo o médico, o
AVC é mais frequentemente encontrado em pessoas de idade mais avançada, sendo
incomum em um jovem de 28 anos, o que levou à decisão de realizar uma
investigação minuciosa para elucidar sua causa.
Lesão
“A investigação descobriu que ‘o corno maior’, ou seja, a
extremidade posterior do osso hioide, osso do pescoço em forma de U que dá
sustentação à laringe, apresentava íntimo contato e traumatizava a artéria
carótida interna, uma das artérias que levam o sangue para a cabeça, o que não
é normal”, relata Campos. “Se essa extremidade for grande e traumatizar
repetidamente a carótida, a artéria sofre uma lesão, afetando o fluxo de sangue
e propiciando a formação de coágulos, que ao se desprenderem vão obstruir as
artérias cerebrais, causando o AVC.”
O paciente foi submetido à cirurgia. O exame de um fragmento
da carótida retirado durante a operação mostrou que o trauma lesou as camadas
da artéria e proporcionou a formação de placas de ateroma (depósito de gordura
e tecido fibroso na parece do vaso) e a formação de trombo, um coágulo de
sangue organizado e aderido à parede da artéria no local da lesão.
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Após exame, paciente foi submetido a cirurgia para
substituição da parte da artéria que sofreu a lesão por um enxerto feito com
veia safena – Foto: Schölla Schwarz/Wikimedia Commons
.
Uma pesquisa na literatura médica encontrou relatos de outras
situações de risco para traumas sobre a carótida causados pelo osso hioide. “No
esporte, por exemplo, este evento já foi descrito com um jogador de golfe, que
ocorre quando o jogador dá uma tacada e gira o pescoço junto com o corpo”,
afirma Campos. “Também foi reportado o caso de um pedreiro que apresentou a
lesão vascular, causada pelo fato de carregar peso sobre a cabeça.”
Os autores constataram que o paciente estudado possuía o
corno maior do osso hioide mais desenvolvido à direita e, pelo fato dos dois
episódios terem ocorrido em situações semelhantes, postulou-se que a mochila
pesada, carregada nas costas, levava o tronco para trás. “Para manter o centro
de gravidade do corpo, o paciente puxava o pescoço para a frente, o que
proporcionava maior contato entre a extremidade do osso hioide e a carótida”,
conta o médico.
Tratamento
O tratamento do paciente consistiu na remoção cirúrgica do
“corno maior” do osso hioide e na retirada do segmento lesado da artéria
carótida, substituída por um enxerto feito com veia safena (extraída da perna).
“O controle do paciente, realizado durante seis meses, demostra que ele tem uma
vida normal”, destaca Campos. “A publicação deste estudo de caso tem o
consentimento informado do paciente, bem como a aprovação do comitê de ética
médica do HU, de acordo com a política internacional dos editores de revistas
médicas (ICMJE).”
Editada pelo HU, a revista eletrônica A&CR começou a ser
publicada em 2010. “A intenção sempre foi e será a valorização da autópsia, um
exame que tem apresentado progressiva desvalorização na comunidade médica
mundial”, afirma o professor. “Além disso, a correlação anátomo-clínica e
radiológica estimulada pelos artigos demostra que o periódico médico é um
importante recurso didático dentro do ambiente universitário.”
Campos destaca que o HU possui um Serviço de Patologia onde
autópsias são realizadas de forma acadêmica. “Elas são um material
didático-científico muito rico, que serve como produto para reuniões de
correlação anátomo-clínica compartilhada com outras universidades brasileiras e
de Portugal através de videoconferência.” Editada trimestralmente, a publicação
conta com textos em inglês, sendo indexada em bases de dados nos Estados Unidos
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