Este ano, a memória da abolição da escravatura é lembrada
pelo movimento negro no contexto dos 30 anos da Constituição Federal que, assim
como a lei abolicionista, representou um momento de reorganização da sociedade
brasileira. Para os negros, a volta da democracia foi a oportunidade de
legislar pelos direitos negados desde a abolição, há 130 anos.
Uma das parlamentares que participou do processo da
constituinte e colocou essa questão em pauta na Câmara dos Deputados foi
Benedita da Silva (PT-RJ). A deputada contou à Agência Brasil que o processo
não foi fácil, porém motivou conquistas importantes.
Benedita da Silva
Entre os 513 deputados da Câmara, Benedita da Silva é uma das
três parlamentares mulher e negra
Arquivo/Agência Brasil
“Nós éramos poucos e mesmo assim fizemos um grande barulho.
Chegamos na Constituinte com uma proposta desafiadora, que envolvia desde a
nossa imagem nos meios de comunicação, a questão da educação, a criminalização
do racismo, as políticas compensatórias e a inclusão da história da África no
currículo escolar brasileiro. Chegamos com muita força e não conseguimos tudo,
mas nós conseguimos aquilo que foi possível”, contou a deputada.
Das sete constituições que o Brasil teve desde 1824, a Carta
Magna de 1988 foi a primeira a incluir o racismo como crime inafiançável,
imprescritível e passível de pena. Entre os princípios fundamentais, a nova
Constituição cita a promoção do bem de todos “sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
A Constituição conhecida como cidadã também traz o combate ao
racismo entre os princípios das relações internacionais do Brasil e destaca
ainda “a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de
critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.
O texto constitucional vigente respondeu à demanda histórica
de ativistas negros que, dentro e fora do Congresso, aproveitaram o momento de
abertura democrática para desmitificar o 13 de maio. Esse foi o lema da grande
marcha da "falsa abolição" ocorrida em 1888, no Rio de Janeiro, onde
mais de milhares de pessoas, entre elas Benedita da Silva, protestaram contra a
falsa ideia de liberdade.
“A libertação dos escravos foi tímida, porque os escravos
foram libertos entre aspas. Não tinha lugar para colocar as crianças, mulheres
e idosos. Que mercado de trabalho estava reservado pra eles? Que tipo de
habitação? Qual era a relação de salário? Qual era também a questão da
escolaridade? Havia liberdade nas manifestações culturais? Livres pra quê? Pra
passar fome e uma série de situações. Então, na Constituinte foi o grande
momento desse debate”, comenta a deputada.
Uma das maiores dificuldades enfrentadas na Constituinte,
relata Benedita, foi desmitificar a ideia de que no Brasil não existe
discriminação racial.
“Não foi fácil compreender essa questão. Com o mito da
democracia racial era difícil aceitar que existia racismo. Falamos de racismo
na relação de trabalho, na escolaridade, fomos fazendo todos os recortes
necessários que víamos desde o processo da escravatura no Brasil. A gente
também destacou o papel da mulher negra nesse contexto da escravidão e pós
abolição”, ressalta.
“O movimento negro chegou na Constituinte já com bagagem para
enfrentar um debate do qual a maioria não tinha nenhum conhecimento, ou melhor,
tinha práticas racistas, uns conscientes, outros inconscientes. E a nossa
chegada foi de denúncia do que se escondia atrás do mito da democracia racial”,
completa.
Liberdade sem cidadania
Embora a Constituição de 88 tenha impulsionado a edição de
importantes políticas raciais, o marco de três décadas da promulgação da Carta
também é lembrado de forma crítica pelas ativistas. “Em 30 anos da
Constituição, intitulada cidadã, nós vivenciamos uma situação-limite. Quando
você olha para os espaços de poder, a possibilidade de equidade no trabalho,
entre outros aspectos, definitivamente nós precisamos marcar que a população
negra continua na margem”, afirma Vilma Reis, Ouvidora Geral da Defensoria
Pública do Estado da Bahia.
A socióloga destaca alguns avanços das últimas décadas, como
a política de cotas para ampliar o acesso dos negros nas universidades e a
instituição de mecanismos para evitar fraudes no processo de seleção de
concursos públicos que dispõem de vagas para candidatos negros.
Vilma cita ainda o decreto 4887/2003, que regulamenta o
reconhecimento e demarcação das terras ocupadas por quilombolas, entre outras
conquistas, como o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei 10.639/2003, que
determina o ensino da história afro-brasileira nas escolas.
No entanto, a especialista pondera que ainda há muitos
desafios para vencer em todas as áreas. “Tem diversos aspectos da República que
a população negra nem sequer alcançou. E não tem como você pensar um processo
de democratização da sociedade sem superar essa etapa”, reflete.
Segundo a socióloga, 48% dos lares em Salvador (BA) são
chefiados por negras e 457 mil mulheres dependem do Bolsa Família para
sobreviver. Ainda na capital baiana, Vilma relata que mulheres negras perderam
22 filhos jovens para a violência no final de semana anterior a este em que se
lembra os 130 anos da abolição.
“Eu acho fundamental que a gente destaque a questão da
tragédia que a gente vive do extermínio da juventude negra e colar essa
discussão com a destruição do projeto de vida das mulheres negras. Porque, cada
mãe negra que enterra um filho, dois filhos, essa vida dela está sendo
destruída da mesma forma”, disse Vilma.
A Ouvidora acrescenta ainda que as mulheres negras são as
principais vítimas de violência obstétrica no Brasil, além de serem alvos de
discriminação no campo simbólico, seja pela atuação nas religiões de matriz
africana, ou pela exposição à violência desmedida em programas sensacionalistas
de televisão.
“Eu acho que é uma batalha que a gente vai no passo a passo,
mas que a gente não recua, a gente só avança. E isso pra nós é muito
importante”, declara Vilma Reis.
Retrocesso
Para Benedita da Silva, os 30 anos da Constituição estão
sendo marcados por um “profundo retrocesso” nas políticas sociais. Como
exemplo, a deputada lembra a baixa representativade no Parlamento, onde ela
figura com outras duas deputadas como únicas mulheres negras entre 513
parlamentares.
A deputada também cita a aprovação da reforma trabalhista no
ano passado que, segundo ela, “atinge em cheio” a população negra e pode afetar
a regulamentação da chamada PEC das domésticas, considerada um das conquistas mais
importantes para as trabalhadoras negras.
A parlamentar avalia que 30 anos depois da Constituição, os
negros devem retomar com prioridade a luta pelo sistema democrático, inclusive
acima das pautas raciais. “Nós não temos outra coisa maior pra se fazer nos
país neste exato momento do que a defesa da democracia”, encerra Benedita.
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