As várias opiniões sobre a figura de Virgulino Ferreira da
Silva, o “Lampião”, foram bem ilustradas pela música Fim da História, do músico
baiano Gilberto Gil: “Lampião sim, Lampião não, Lampião talvez/ Lampião faz
bem, Lampião dói…”, diz um trecho.
Segundo Gil, a letra foi uma resposta a um artigo do filósofo
nipo-estadunidense Francis Fukuyama, que naquela época havia ficado
mundialmente famoso por sugerir que a queda do Muro de Berlim, em 1989,
significava o “fim da história” e a vitória definitiva do capitalismo liderado
pelos Estados Unidos.
Uma cidade do interior de Pernambuco, no entanto, oferecia,
para Gil, o contraponto perfeito ao argumento de Fukuyama. Em 1991, quando Gil
ainda trabalhava naquela canção, o município de Serra Talhada, a 407
quilômetros de Recife (PE), mergulhou numa discussão exaltada sobre Lampião,
que nascera ali no final do século 19.
Uma fundação local queria erguer uma estátua do cangaceiro
numa área pública do município, mas as famílias mais tradicionais da cidade
rejeitavam a ideia. Para tentar resolver o embate, a prefeitura decidiu
promover uma consulta pública para que a população decidisse sobre ela
(“Passaram-se os anos, eis que um plebiscito/ Ressuscita o mito que não se
destrói…”). O monumento venceu nas urnas, mas nunca foi construído.
Quase trinta anos depois – novamente rejeitando o “fim da história”,
diria Gil – e mesmo em um momento diferente, Serra Talhada tende a se dividir
outra vez em torno do mesmo assunto: uma fundação anunciou que vai instalar
ainda neste ano três estátuas em uma área próxima ao centro da cidade: uma de
Lampião, outra de sua esposa, Maria Gomes de Oliveira, a “Maria Bonita”, e uma
terceira de um dos seus soldados mais próximos, Isaías Vieira dos Santos, o
“Zabelê” (“Sempre o pirão de farinha da História/ E a farinha e o moinho do
tempo que mói…”).
O projeto faz parte das comemorações de 80 anos da morte do
cangaceiro, que foi lembrada em muitas cidades do interior nordestino ao longo
deste ano.
O plebiscito de 1991
No começo de 1988, o então vereador Expedito Eliodoro
(extinto PDS) apresentou um projeto para construir uma grande estátua de
Lampião no alto da serra que moldura e inspira o nome do município, a cerca de
quatro quilômetros da praça central. Sua ideia era inspirada no monumento de 27
metros do Padre Cícero, erguida 20 anos antes em Juazeiro do Norte, no Ceará.
Naquele ano, alguns grupos da cidade se preparavam para
comemorar os 90 anos do nascimento do cangaceiro, cujos esparsos registros
indicam que aconteceu ali, em um sítio nos arredores, em algum dia de junho de
1898.
À época, a relação de Serra Talhada com Lampião era ambígua:
enquanto muitos soldados das forças volantes que combateram o cangaço pelo
sertão nordestino nas décadas de 1920 e 1930 ainda estavam vivos e tinham se
tornado nomes importantes da política e da economia municipal, movimentos
estudantis, culturais e operários tinham nele uma imagem de luta por justiça
social.
Morto em 1938, três semanas depois do seu aniversário de 41
anos, em Poço Redondo, no Sergipe, Lampião não tinha sequer um logradouro em sua
cidade natal (“…Um cangaceiro/ Será sempre anjo e capeta, bandido e herói…”)
Sem apoio parlamentar, o projeto de Eliodoro – que tinha sido
o vereador mais votado da história municipal – não foi aprovado. “A ideia era
muito doida: ter uma estátua gigante do Lampião no alto do morro. Sairia caro,
mas óbvio que seria muito bacana para a cidade”, afirma Cleonice Maria,
presidente da atual Fundação Cabras de Lampião de Serra Talhada.
A ideia nunca mais abandonou o município: no ano seguinte,
quando um jornalista da recém-chegada TV Asa Branca, afiliada da Rede Globo em
Caruaru, a 314 quilômetros, soube do projeto vencido, viajou até a cidade para
fazer uma reportagem sobre a estátua. Era o que faltava para virar o principal
assunto dos pouco mais de 72 mil habitantes.
“Foi entre abril e maio de 1990. A imprensa local, que até
então pouco falara no assunto, passou a repercuti-lo, e logo virou um debate em
todos lugares de Serra Talhada. Você ia no bar, estavam falando sobre a estátua
de Lampião. Ia na escola, a mesma coisa. Na rua, no salão de cabeleireiro, no
mercado, no trabalho. Só se falava disso”, conta o jornalista, professor e
historiador Paulo César Gomes, que estuda o fenômeno social do cangaço.
Em 1991, a extinta Fundação Casa da Cultura de Serra Talhada
tomou a ideia para si e propôs que a prefeitura abrisse uma consulta popular
sobre a construção da estátua não no alto do morro, mas em uma área conhecida
como Estação do Forró, atrás da antiga parada ferroviária. O presidente da
instituição à época, Tarcísio Rodrigues, já tinha em mãos uma maquete feita
pelo artista plástico Karoba, que ficou exposta ao público local.
O prefeito topou a ideia e decidiu marcar o plebiscito para o
feriado de 7 de setembro – dia da Independência do Brasil. “Foi um embate entre
gerações de Serra Talhada, porque os contemporâneos de Lampião se posicionaram
contra: eles tinham sido influenciados pelo legado negativo dele, pela
perspectiva da violência e do banditismo”, recorda Gomes.
“Os jovens, que vieram depois que Lampião morreu, não tiveram
essa mesma influência. Eles encamparam a luta nos movimentos estudantis,
centros acadêmicos e com o apoio de associações operárias”, completa.
A consulta da prefeitura de Serra Talhada chamou a atenção da
imprensa pelo país: em julho de 1991, a revista Veja publicou uma reportagem
dizendo que a votação era a “última batalha do rei do cangaço”. O jornal
carioca O Globo foi na mesma linha, afirmando que Lampião finalmente seria
julgado, 53 anos depois de seu assassinato.
De acordo com a Justiça Eleitoral de Serra Talhada, 76% dos
eleitores (2.289 pessoas) votaram pelo “sim”, contra 22% do “não” e 0,8% de
abstenções. A apuração foi acompanhada pela jornalista Vera Ferreira, neta de
Lampião e Maria Bonita e, após o anúncio do resultado, os apoiadores da estátua
aproveitaram o desfile cívico de 7 de setembro e a festa de Nossa Senhora da
Penha, padroeira da cidade, para comemorar nas ruas. Nas semanas seguintes, os
que tinham feito campanha pelo “não” ameaçaram destruir o monumento assim que
ele fosse erguido.
A estátua de Lampião, porém, jamais se materializou. Sem
dinheiro para executar a ideia, que previa grandes dimensões e o uso de
materiais como bronze e granito, a fundação – que tinha assumido a
responsabilidade da construção – não conseguiu financiamento para tirá-la do
papel. A Fundação Banco do Brasil, uma das sondadas por Rodrigues, não quis
patrocinar o projeto. Em 1993, quando ele deixou a presidência da instituição,
o plano foi definitivamente engavetado.
A relação entre Lampião e Serra Talhada, no entanto, mudou
depois daquele ano – mesmo sem a estátua.
Uma pequena praça no centro da cidade passou a ser chamada
informalmente de “Pracinha do Lampião”, mesma época em que um novo hotel abriu
suas portas com o apelido do cangaceiro. Uma rua da periferia foi nomeada
oficialmente de Virgulino Ferreira da Silva e, em 1995, membros de um grupo de
teatro de rua criaram a Fundação Cabras de Lampião que, por sua vez, deu origem
ao Museu do Cangaço, localizado no mesmo espaço onde ficaria o monumento.
“Abriu-se uma perspectiva de se explorar comercialmente a
figura de Lampião do ponto de vista do turismo. Houve uma ascensão do xaxado
(dança criada pelos cangaceiros a partir das bases do forró), de eventos
relacionados ao cangaço e depois veio o museu. O plebiscito foi uma virada na
forma como Serra Talhada lida com Lampião, mas a cidade precisou que a opinião
popular prevalecesse para que isso acontecesse”, analisa Gomes.O novo projeto
Depois de 27 anos do plebiscito, um novo projeto de estátua
de Lampião voltou a dividir Serra Talhada. Neste ano, em que várias regiões do
Nordeste lembraram do aniversário de 80 anos da morte do cangaceiro, Cleonice
Maria, da Fundação Cabras de Lampião, anunciou em julho que o monumento enfim
será erguido ao lado do Museu do Cangaço.
As dimensões do projeto são diferentes do que havia sido
proposto em 1991, assim como os custos envolvidos, mas Cleonice o encara como
uma retratação da cidade com a figura de Lampião. “Lampião é um símbolo de
resistência e está na história como um homem que lutou contra todo tipo de
exploração e de injustiça. A maioria das pessoas em Serra Talhada apoia nossa
ideia e reconhece a importância dele para a cidade”, afirma.”As estátuas estão
muito bonitas. Vamos colocá-las na parte externa do museu e deixá-las ali para
que as pessoas façam suas homenagens”, comenta, empolgada.
Produzidas a partir de concreto armado pelo artista Zaldo
Mendes, de Sanharó, a 215 km de Serra Talhada, elas terão 1,80 metro de altura
sobre pedestais de 1,5 metro. As peças já estão na cidade, mas ainda não foram
instaladas pela demora da fundação em organizar a inauguração – o mais provável
é ela aconteça em janeiro, fora das comemorações de 2018.
O anúncio, assim como aconteceu no começo dos anos 1990, não
foi bem recebido por todos os moradores. Agora, além da figura heróica, os
apoiadores da estátua são aqueles que acreditam que o monumento vai atrair
ainda mais turistas interessados na história de Lampião para Serra Talhada,
beneficiando a economia local. De outro lado estão as pessoas que consideram
que a imagem do cangaceiro é negativa para a cidade.
Nas redes sociais, xingamentos como “bandido”, “assassino”,
“estuprador”, “sanguinário” e “fascínora” pipocaram para se referir a ele
quando a notícia foi publicada pelo principal jornal local. Cleonice conta que,
depois de uma entrevista a uma rádio, as reações subiram de tom nas ruas,
apesar de não ter recebido ameaças.
O empresário Euclides Ferraz Neto é um dos principais
oposicionistas da ideia. Neto e sobrinho de soldados da volante de Pernambuco
que combateram Lampião no sertão, ele conta que cresceu ouvindo histórias sobre
os crimes do cangaceiro. “Fica essa questão se ele foi um herói oi não foi, mas
para a minha família, que passou a vida defendendo o Estado, Virgulino sempre
foi um homem com uma vida pregressa, um fora da lei”, diz.
“A estátua é uma tentativa de algumas pessoas colocarem a
ideia de que Serra Talhada vive a cultura de Lampião. Isso é uma mentira.
Sequer somos a capital do xaxado. Não tem nenhum programa voltado para isso
aqui. Não há nenhum benefício cultural ou histórico em colocar um monumento
desses na cidade. Eu acredito que, fazendo a pergunta certa em um plebiscito,
todo mundo vai se posicionar contrariamente”, completa.
O prefeito Luciano Duque (PT), eleito em 2016, porém, é um
entusiasta dos monumentos. “Tem gente que odeia e tem gente que admira, mas eu
vejo como uma figura histórica que teve importância para a cidade e para a
região”, opina. “Além de tudo, será benéfico para o turismo, porque o cangaço,
como fenômeno, é conhecido no mundo inteiro”. Como a estátua será colocada em
uma área de propriedade privada da fundação e não necessitou de recursos
públicos, a prefeitura não teve participação na decisão.
Cleonice diz achar difícil que os monumentos sejam
vandalizados, como ameaçavam os opositores do projeto original, e que não há
como comparar o plebiscito de 1991 com o contexto atual de Serra Talhada. “De
lá pra cá muita coisa aconteceu. O curso da história foi modificado. Aquelas promessas
de jogar bombas, deixar um avião cair sobre a estátua… Isso não existe mais,
porque a cidade apoia Lampião”, diz ela, se referindo às ameaças feitas à
época.
Ferraz, no entanto, não é tão otimista quanto Cleonice. “Se a
estátua de Juraci Magalhães, que foi um estadista, um governador, foi depredada
quando colocada na praça da cidade, por que a de Lampião não seria?”, indaga.
Ainda hoje alguns soldados da antiga força volante de
Pernambuco estão vivos em Serra Talhada, bem como antigos amigos do fazendeiro
José Alves de Barros, o “Zé Saturnino”, primeiro grande inimigo de Lampião, e
ex-cangaceiros que chegaram a lutar com ele no sertão nordestino.
Nas eleições presidenciais deste ano, a divisão entre
eleitores de Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL) foi bastante marcada
pelo debate sobre a estátua – o petista teve 77% dos votos no segundo turno no
município.
Para o historiador Paulo César Gomes, o plebiscito de 1991
ainda influencia a percepção de Serra Talhada sobre o cangaceiro, o que pode influenciar
no debate atual. “Hoje é mais fácil debater o cangaço nas escolas, porque os
alunos pedem filmes sobre o assunto, procuram o Museu do Cangaço, querem dançar
xaxado e procuram saber se Lampião foi um bandido ou um herói”, conta.
BBC
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