Depois de uma insurreição popular convocada por SMS em
Moçambique, em 2010, da Primavera Árabe difundida pelo Twitter no Oriente
Médio, em 2011, e das manifestações brasileiras de junho de 2013 impulsionadas
pelo Facebook, chegou a vez do WhatsApp ocupar o protagonismo na organização de
uma mobilização.
A greve dos caminhoneiros, que interditou milhares de trechos
de rodovias em todo o país ao longo de dez dias, é a maior mobilização mundial
já feita pelo WhatsApp, dizem Yasodara Córdova, pesquisadora da Escola de
Governo de Harvard, nos Estados Unidos, que estuda como os governos lidam com a
Internet, e Fabrício Benevenuto, professor de Ciência da Computação da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pioneiro na pesquisa de conteúdos
compartilhados em grupos de WhatsApp. “A mobilização ocorre por motivos
sociais. As redes dão uma vazão a esses sentimentos”, diz Yasodara.
“Na quarta-feira antes da greve, o (preço do) diesel
aumentou. Desci para Santos para levar carga. Quando voltei, o diesel já tinha
aumentado. Na sexta, aumentou de novo. A galera se comunicou no WhatsApp e
falou: não está dando mais”, lembra o caminhoneiro Moisés de Oliveira, que
ficou parado na Rodovia Régis Bittencourt, em São Paulo, onde ajudou a
organizar um grupo de grevistas, sempre com o celular à mão.
A essência do trabalho do caminhoneiro é circular. Isso facilitou
que as mensagens se espalhassem rapidamente por diferentes pontos do Brasil. “A
gente viaja o Brasil inteiro e vai conhecendo outros caminhoneiros. Quando
chega no posto para dormir, a gente conversa, troca o (número de) WhatsApp. Aí,
quando chegou a greve, já havia vários grupos montados e a gente distribuiu a
informação”, diz Oliveira, de 40 anos, 22 anos deles passados atrás do volante
do caminhão.
“O Whatsapp facilitou demais a nossa comunicação. Antes, a
gente era desconhecido (um do outro). Agora, o pessoal faz um vídeo e, em dois
minutos, já espalhou pelo Brasil”, completa. “A gente não é envolvido com
partido político nenhum. Mas a gente tem a nossa logística”.
Na última quinta-feira, apesar de já não haver mais pontos de
interdição nas estradas, segundo a Polícia Rodoviária Federal, os apelos pela
continuidade da greve não haviam parado de circular pelo WhatsApp. Eram desde
pedidos para caminhoneiros irem até Brasília, para que ficassem parados em
casa, até convocações de protestos nas cidades.
Pessoas e carros fazem fila para comprar combustível em um
posto em Luziania (GO), no sétimo dia da greve dos caminhoneiros© Reuters
Pessoas e carros fazem fila para comprar combustível em um posto em Luziania
(GO), no sétimo dia da greve dos caminhoneiros
Conversas fechadas, criptografadas, sem rastro e em pirâmide
A comunicação por WhatsApp tem características diferentes das
feitas por Twitter e Facebook. Os dois últimos “são como uma via pública, uma
praça, onde você abre uma banquinha e as pessoas podem te ver e interagir com
você. Já o grupo de WhatsApp é como a sala de jantar da sua casa, não entra
todo mundo”, exemplifica a pesquisadora brasileira Yasodara Córdova.
Na prática, enquanto postagens públicas no Twitter ou
Facebook podem ser vistas por qualquer um e chegar de uma vez só a milhares de
usuários, as mensagens de WhatsApp atingem apenas um indivíduo ou os
participantes do grupo, limitados a um número máximo de 256 pessoas. Dali,
podem ser levadas para outras pessoas ou outros grupos, em uma distribuição em
pirâmide.
Além disso, todo diálogo é criptografado – é como se a sala
de jantar estivesse bem trancada e só pudesse entrar quem fosse convidado ou
tivesse a chave.
Isso faz com que a conversa fique fechada – para acessá-la,
só infiltrado. “A comunicação no Whatsapp acontece de maneira mais velada, mais
escondida. São grupos relativamente pequenos. E não há registro público, um
rastro, porque há essa encriptação”, diz Benevenuto.
Além disso, a comunicação é mais difusa. A conversa vai se
propagando pelos celulares, sem registro de quem foi a fonte original da
informação – seja mensagem em texto, imagem, áudio ou vídeo. Assim, fica mais
difícil identificar quem são as vozes mais difundidas e que estão se
transformando em lideranças.
Essas características fazem com que a mobilização pelo
WhatsApp represente um novo desafio para governos, acostumados a negociar com
lideranças de organizações definidas, com logotipo e CNPJ.
“O sindicato é um modelo que está em declínio no mundo todo.
Não só em termos de representatividade, mas também em metodologia. No caso da
greve dos caminhoneiros, há um pioneirismo da organização do trabalho baseado
na internet. É uma espécie de sindicato digital. É possível que no futuro a
gente tenha novas formas de mobilização da força de trabalho como essa”, fala
Yasodara.
Governo foi driblado pela organização dos caminhoneiros
No quarto dia de greve, uma quinta-feira, o governo do
presidente Michel Temer fechou um acordo com parte dos representantes de
associações e sindicatos de caminhoneiros, se comprometendo a baixar o preço do
combustível em 10% por 30 dias. Com isso, anunciou que a greve iria ter uma
trégua. Naquele momento, os postos já começavam a ficar sem combustível.
Mas os caminhoneiros organizados pelo WhatsApp não
concordaram com a negociação. No aplicativo, seguiram-se mensagens de repúdio
às lideranças que negociaram com o governo Temer, além de aúdios e vídeos
notificando sobre pontos de paralização que se mantinham ativos. Nada de
acordo, a greve continuava.
“Se não tivesse o WhatsApp, eu creio que o governo já tinha
enganado a gente há dias. O governo ia na televisão dizer que a greve acabou.
Até um caminhoneiro conseguir se comunicar com outro, já tinha tudo mundo ido
embora, tinha acabado a greve. Agora, a gente assistiu a nota do presidente e
já passou informação para os grupos de WhatsApp: não acabou não”, explica o
caminhoneiro Moisés Oliveira.
Governador de São Paulo Márcio França reunido com
representantes dos caminhoneiros / Imagem: Divulgação Governo de São Paulo© BBC
Governador de São Paulo Márcio França reunido com representantes dos
caminhoneiros / Imagem: Divulgação Governo de São Paulo
São Paulo usou o WhatsApp nas negociações
No Estado de São Paulo, foi traçada uma estratégia diferente
para negociar com os grevistas. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) de São Paulo, Marcos da Costa, irmão de um caminhoneiro hoje afastado da
profissão, resolveu entrar nas negociações.
“Não era um movimento institucionalizado, respondendo a
sindicatos e associações. Eram caminhoneiros que se esgotaram com o aumento do
preço dos combustíveis e começaram a parar (de rodar). A comunicação deles por
WhatsApp permitiu que se formasse uma onda muito rápida no Brasil inteiro”, diz
Costa.
Depois da negociação fracassada do governo federal na
quinta-feira, Costa pediu que colegas advogados do setor de transportes
procurassem identificar quem eram as lideranças dos caminhoneiros parados em
São Paulo. Em seguida, no sábado de manhã, mais de 10 delas se reuniram na sede
da OAB.
“No começo da reunião, os caminhoneiros pediram para tirar
foto e fazer vídeo para compartilhar nos grupos de WhatsApp. Isso viralizou. E
serviu para que a gente pudesse ter segurança da capacidade de mobilização
daquelas pessoas”, fala o presidente da OAB.
Em seguida, foi montado um novo grupo de WhatsApp entre esses
caminhoneiros e a OAB. “Esse grupo serviu de preparação das pautas de
negociação. Ele canalizava as demandas dos caminhoneiros, porque cada pessoa
dessas tinha interlocução com outros grupos de WhatsApp. Era uma rede
gigantesca”, fala Costa. “Eu não tenho dúvida de que isso fez a diferença. Foi
fundamental para abrir a possibilidade de diálogo com aqueles que estavam
realmente à frente do movimento”.
No sábado à tarde, o grupo de WhatsApp criado pela OAB se
reuniu com o governo de São Paulo para negociar a desobstrução das estradas do
Estado.
“Ainda durante a reunião, eles (os representantes dos
caminhoneiros) mandaram mensagens de WhatsApp para a base pedindo para liberar
(as estradas). Cerca de uma hora depois, vimos pela cobertura da mídia que a
liberação estava começando. Foi o diálogo por WhatsApp que permitiu a primeira
liberação de rodovia”, comenta o advogado. O movimento dos caminhoneiros em São
Paulo não acabou ali, mas de fato começou a diminuir.
Ainda no sábado, o ministro-chefe da Secretaria de Governo,
Carlos Marun, esteve em São Paulo para participar das conversas com o grupo
paulista, tomar conhecimento das pautas e tentar tirar as negociações de
Brasília do limbo.
“A greve mostrou que vamos ter que criar mecanismos para dar
conta de demandas apresentadas de forma completamente diferentes.
Tradicionalmente, eram instituições que iam ao governo apresentar suas pautas.
Hoje, vemos movimentos líquidos, absolutamente horizontalizados. A partir de
agora, os governos vão ter que aprender a lidar com essa nova realidade e
aprender a identificar canais que possam servir para diálogo”, conclui Costa.
BBC Brasil
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